Shipping. O termo se tornou mais comum nos últimos anos fora da internet, mas ainda confunde algumas pessoas sortudas que não estão de fato mergulhadas na cultura de fandom. Até não muito tempo atrás (como uns 10 anos), se autodenominar shipper na “vida real” era o mesmo que assumir uma obsessão pouco saudável. Hoje em dia, contudo, se tornou parte integral da participação em diferentes comunidades de fãs de ficção, incluindo jogos, séries, livros e filmes.
“Shippar” personagens significa acreditar que eles devam formar um casal, independente do que o canon (a história oficial) diga. É possível, claro, shippar personagens que estejam canonicamente juntos ou destinados a estar juntos, mas parte da ideia do shipping é que não haja restrições no que diz respeito à obra principal nesse tocante, mesmo que a obra diga outra coisa. Por exemplo: Zuko e Katara terminaram juntos em Avatar? Não, mas isso não impede que pessoas produzam conteúdo shipper de ambos até hoje, mais de uma década após do término da série. Restrições de gênero, sexualidade, idade e mesmo o fato dos personagens se encontrarem ou não na obra original podem ser parcial ou completamente ignoradas a depender do shipper em questão; a ideia é criar cenários românticos e/ou sexuais envolvendo dois ou mais personagens já existentes.
Existem incontáveis tipos e combinações de categorias de ships, desde os confirmados pela obra (canon ships, ou ships canônicos) até crack ships (que não fazem sentido, normalmente como brincadeira), passando por slash (com relacionamentos entre homens) femslash (o mesmo, com mulheres), OTP (one true pairing, o ship ideal da pessoa em questão), OT3 (trisais), BrOTP (melhores amigos, sem romance), diferença de idade, AU ships (Alternate Universe, universo alternativo com os mesmos personagens em outro ambiente, linha temporal, ou história muito diferente do canon), PWP (porn without plot, safadeza sem história nenhuma porque por que não?), multishipping (quando alguém shippa mais de um casal, às vezes com os mesmos personagens em diferentes ships), e por aí vai. Uma busca rápida de tags no repositório Ao3 já dá uma ideia da pluralidade e popularidade que a prática do shipping possui – e de nomenclaturas também.
Embora algumas categorias sejam mais ou menos populares, ou mesmo discutíveis, dentro dos fandoms, a ideia é a de deixar a fantasia rolar na ficção, no sonho acordado ou em histórias feitas para si próprio ou para amigos.
História (ou “ai meu deus eles ERAM MESMO roommates”)
O termo ship e todas suas variantes vêm da palavra em inglês relationship, relacionamento, e os primeiros registros de seu uso são de 1995 entre os fãs de Arquivo X, em relação à crença ou desejo de que os protagonistas Mulder e Scully tivessem um romance. Etmologicamente o sufixo -ship denota a substantivação de certas palavras, especialmente as que definem relações entre pessoas: friend/friendship (amigo/amizade), companion/companionship (acompanhante/companhia), etc. A palavra ship sozinha, no entanto, significa nave ou navio, o que permite várias brincadeiras com o termo que o original de 1995, “relationshipper”, não permitia.
Apesar do termo ter sido supostamente cunhado nos anos 1990, o conceito de shipping já existe há muito mais tempo. Se pode discutir que atitudes similares ao shipping atual existem desde pelo menos a Era Vitoriana, com cartas chegando aos autores dos folhetins seriados publicados semanalmente questionando o futuro do casal romântico. No entanto, a primeira vez que shipping se tornou um fenômeno cultural dentro de franquias de mídia moderna foi com a série de Star Trek original, exibida a partir de 1966 e reprisada durante os anos 1970 no canal NBC. Star Trek tinha em sua audiência um número surpreendente de mulheres, e em especial depois do cancelamento da série após a 3ª temporada (que só chegou até aí porque uma imensa campanha dos fãs havia conseguido com que a série tivesse duas temporadas a mais do que o planejado pela emissora) essas fãs passaram a escrever histórias paralelas sobre as aventuras dos personagens – em especial desenvolvendo romances entre o protagonista Capitão Kirk e seu colega vulcano Spock.
Fanworks e gatekeeping
Essas fãs – que não raro eram estudantes universitárias ou donas de casa com famílias, e que muitas vezes incluíam jovens LGBT+ de várias gêneros – se encontravam em convenções, trocavam cartas e criavam fanzines com essas histórias que se baseavam na obra original – as fanfictions. O romance entre Kirk e Spock era comumente referido como “K/S”, o que tornou o termo slash (que é a barrinha, “/”) sinônimo de romances entre personagens masculinos, utilizado até hoje. A história das fanfics, como são chamadas carinhosamente, está intimamente ligada com a popularização do shipping e da comunicação entre fãs, especialmente as mulheres.
Naturalmente, a facilidade de comunicação trazida pela internet a partir dos anos 1990 e a quantidade cavalar de séries, filmes, etc. que inundou o panorama midiático nos últimos 50 anos fez com que o material produzido por fãs aumentasse em quantidade e qualidade, criando as culturas de fandom (fan domain, “domínio/espaço dos fãs”). Enquanto as fanarts – artes visuais desenvolvidas a partir de obras já existentes – possuem uma grande variedade de temáticas e ultimamente tem ganhado maior prestígio como uma forma de conexão entre os autores os fãs, as fanfics continuaram sendo majoritariamente produzidas e consumidas por um público shipper e ainda são consideradas uma forma de escrita “menor” e “cringe” (“vergonha alheia”, numa tradução livre). Mesmo que existam fanfics que superem em tamanho e qualidade muitos livros publicados, a cultura dos fandom – nascida e alimenta em sua origem por muitas mulheres – se tornou cada vez mais opressiva em relação a esse tipo de manifestação tipicamente feminina e LGBT+ dentro da mídia quanto mais popular se tornou – ou seja, quanto mais uma ideia de “ordem” foi adentrando as comunidades e determinando o que é e o que não é “aceitável” como manifestação do fandom.
Apesar de ter sido ampliada com essa popularização dos fandoms, essa atitude – chamada gatekeeping, algo como “guarda de acesso” – existe desde antes desse fenômeno. O gatekeeping contraria o que poderia ser considerada a própria ideia de um fandom: a interação livre entre fãs de uma série/filme/livro/etc por paixão. Em teoria não existem regras dentro de um fandom além de respeito mútuo, e no entanto atitudes de gatekeeping criam bolsões tóxicos que podem trazer sofrimento para pessoas que só querem se inspirar e se divertir dentro desse ambiente. Não são poucas as pessoas que descobriram sua vocação produzindo conteúdo em fandoms: além de artistas e escritores, muitas pessoas se tornaram editoras, designers gráficos, historiadores, arquivistas, entre outros interesses despertados investigando o que os personagens favoritos fazem na obra favorita. O assédio, a ridicularização ou simplesmente a ostracização de pessoas que participam do fandom por motivos arbitrários pode desestimular pessoas de todas as idades a exercitar habilidades novas e entrar em contato com outras realidades, por nenhum bom motivo.
Existem vários tipos de gatekeeping, incluindo o ataque a autores que produzem conteúdo considerado “inadequado” por algum motivo, a dominação do fandom por fãs que tentam subverter a temática da obra original para seus próprios fins (um exemplo seria a época dos bronies mais radicais de “My Little Pony”), o assédio de fãs aos próprios criadores e outros funcionários das obras, inclusive com ameaças a dubladores e outros membros; e as ship wars.
Batalhas navais
Ship wars são uma das formas mais antigas de gatekeeping e drama dentro de fandoms. Como o nome implica, são conflitos entre shippers de diferentes relacionamentos. Em obras com um elenco extenso é comum que existam vários ships diferentes, e a maioria dos fãs não se importam com as preferências uns dos outros mesmo que determinados ships não sejam de seu gosto. Porém existem pessoas que são ativamente contra outros casais, e isso pode causar muito sofrimento dentro de um fandom.
Um caso relativamente recente de problemas reais causados pelas ship wars é da série de animação Voltron, cujos dubladores americanos foram perseguidos e ameaçados por fãs fanáticos por um determinado ship – e outro ship popular na série imediatamente passou a atacar e realizar doxxing com o outro grupo. Outros casos famosos também ocorreram durante Avatar: A Lenda de Aang e Avatar: A Lenda de Korra, com os criadores sofrendo diversos ataques de fãs quando ships populares não se tornaram canônicos.
Em games, isso tampouco é incomum. Devido à sede insaciável dos fãs de Overwatch (é sério, a gente deveria procurar uma terapia) e de seu elenco cada vez maior, a quantidade de ships possível é imensa. Os mais populares, contudo, costumam se chocar quando um personagem pertence a ambos: é sabido que os fãs de Pharah/Mercy se tornaram rudes e agressivos com shippers de Mercy/Genji em 2017, por exemplo. Os dubladores dos heróis, que antes se divertiam com brincadeiras com diferentes casais inclusive gravando vídeos e fazendo fotos engraçadas, pararam gradualmente de postar coisas brincando com shipping e passaram a responder a perguntas do tipo com evasivas.
Apesar de divertido dentro de seu próprio mundo, e de poder, de fato, influenciar os criadores (os criadores de Korra, em textos sobre o fato da protagonista terminar a série com a engenheira Asami, comentam que ao ver que os fãs seriam receptivos a isso começaram a desenvolver a ideia melhor e a lutar por ela), shipping é um passatempo dos fãs. Shippar um casal e crer que ele deva estar na obra oficialmente são coisas muito diferentes, que podem coincidir ou não. Perseguir outras pessoas com base em que tipo de ship elas apóiam ou, pior, perseguir os próprios criadores para que seu desejo seja realizado – quando a obra é deles – é ser o valentão do pátio. É infantil, destrutivo, e estraga a brincadeira de todo mundo – como todo gatekeeping.
Um parêntese sobre temas sensíveis
Muitos fãs perseguem ships sob bandeiras morais, acusando outros de perversões sexuais e falta de caráter baseado no conteúdo que elas consomem ou produzem. Sem abordar a máxima de que atitudes condenatórias dizem mais sobre o acusador do que sobre o acusado, essa discussão é espinhosa. O fato de que está provado de que a ficção realmente afeta como as pessoas enxergam o mundo é válida, mas no fim das contas é preciso lembrar que isso é um faz-de-conta – e que a maioria das pessoas que engajam em um faz-de-conta, seja ele uma fanfic, um livro, uma série, um filme ou um jogo, compreendem o que é real e o que não é. Existe uma grande quantidade de livros e vídeos que dão panoramas de profundidade variada ao tema e vou indicar a primeira metade deste vídeo do canal Folding Ideas sobre Cinquenta Tons de Cinza como uma introdução didática a esse ponto.
É importante lembrar, independente disso, que no mundo do fanfic conteúdos risqué como tortura, discriminação, estupro, abusos, e pedofilia costumam ter avisos muito claros sobre os temas tratados antes do texto, para que pessoas que não tenham interesse em consumir temas assim possam evitá-los – e para pessoas acostumadas com a internet, evitar esses conteúdos é uma tarefa fácil. No caso do acesso de crianças e jovens, é tarefa familiar e social ensiná-los a tomar cuidado na internet de todas formas, inclusive se proteger de conteúdo sensível. E que, embora haja uma relação entre pervertidos reais e conteúdo desse tipo, não há causalidade – quer dizer, ler ou produzir esse tipo de conteúdo não torna ninguém um depravado ou criminoso.
Neste parêntese também incluo ships que são entre pessoas reais, em especial as que se incluem namorando pessoas de verdade. Basta uma pesquisa superficial para encontrar fanfic e fanart com garotas adolescentes e jogadores de futebol ou popstars. Apesar dessas manifestações normalmente serem benignas, incluir seres humanos reais – com seus desejos, preferências, e profundidade de SER HUMANO – em conteúdo produzido por fãs pode ser desde embaraçoso até afetar amizades reais.
Este tipo de situação é provavelmente mais nociva que o tratamento de temas sensíveis na ficção – vemos violência, morte e abuso na mídia todo o tempo, mas quando pessoas reais estão envolvidas a situação muda completamente. Mesmo em casos aparentemente inofensivos, considerar celebridades como bonecas é de uma falta de empatia preocupante.
Conclusão
Sonhar acordado com o seu casalzinho favorito em uma história? Escrever, desenhar ou auxiliar na criação e pesquisa para fazer novas histórias com esse casalzinho? Exercitar suas habilidades e se divertir criando teorias juntos, compartilhando tudo isso em uma comunidade com os mesmos interesses? Isso é muito divertido. Shipar é um hobby antigo que sempre uniu muitas pessoas, às vezes de diferentes pontos de vista e locais do mundo, através de um ponto: a conexão entre indivíduos.
O que leva pessoas a ser fãs de ships é o mistério e a descoberta do que leva duas pessoas a ter um relacionamento. É uma forma de refletir como cada um é um mundo e que diferentes personagens teriam diferentes dinâmicas – e uma forma de criar explorações e projeções dos próprios sentimentos, crenças e sexualidade através de obras que “falam” com você. E tudo isso com a possibilidade de encontrar outras pessoas que estejam disponíveis a falar desses temas através das lentes da obra. É divertido, ajuda a crescer, e torna o fandom mais alegre e receptivo de forma que nenhum gatekeeping consegue.
Ilustradora, mestra em Poéticas Tecnológicas pela UFMG, game designer, quadrinista, e dona de uma tatuagem da Symmetra como um glaceon que certeza ninguém tem nem terá.
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