Quando Overwatch foi lançado, em maio de 2016, já havia um burburinho em torno do jogo por vários motivos. Após a gigante Blizzard cancelar Titans, que seria seu próximo MMORPG, Jeff Kaplan mudou o foco para um jogo em estilo de time, e havia muita expectativa em torno do que a empresa faria com um FPS multiplayer.
E claro, certa controvérsia: a pose sexualizada da heroína e garota-propaganda Tracer em materiais promocionais provocou críticas, que foram – surpreendentemente – ouvidas pela empresa. A imagem de Tracer foi alterada e isso criou um precedente com Overwatch: a equipe parecia estar atenta aos fãs, inclusive os que criticavam tradições misóginas dos jogos multiplayer.
E são apenas isso: tradições. Não existem dados comprovando que a padronização dos corpos de personagens femininos como “jovens magras com quadris e peitos” em games garanta a venda dos jogos; por extensão, não há nenhum dado que prove que um tipo de corpo feminino específico aumente as vendas. É apenas um costume consumado por décadas de foco nas vendas para homens e meninos, com várias instâncias de deformação dos corpos para criar uma imagem hipersexualizada. E também é assim com vários preconceitos relacionadas à cor de pele de personagens, representação de certos grupos, etc. A ideia de “diversidade nos jogos”, englobando todas as questões relativas ao rompimento desse status quo começou a se fazer mais vocal nos anos 2010 – chegando até na catástrofe que foi o #GamerGate em 2014, e mostrando a cara feia de uma audiência que se acha exclusiva e homogênea (o que aconteceu é prosa pra outro dia, mas quem não acompanhou isso com atenção na época deveria dar uma olhada com atenção hoje).
Durante essa década, contudo, as empresas maiores se sentiram mais seguras em investir na representação de outras culturas, gêneros, sexualidades e etnias em seus jogos. O elenco de Overwatch é dos mais emblemáticos nesse sentido, possuindo, no momento da redação deste texto, um número igual de personagens masculinos e femininos, pelo menos dois LGB, e com os mais variados tons de pele e origens. Há uma preocupação sincera em contratar consultores, preferência em dubladores com background étnico/cultural dos personagens, atenção aos detalhes de skins, cenários e conversas, etc.
Mas e quanto a questão dos corpos femininos? Overwatch parece ter encontrado um ambiente e um espaço em que a diversidade nesse sentido poderia ser explorada em um jogo de tiro em primeira pessoa (!) online (!!) por uma gigante como a Blizzard (!!!). E isso se tornou uma grande vantagem in-game.
Overwatch é um jogo focado nos heróis: cada personagem jogável precisa de destacar em habilidades, movimentação, possibilidade de combos, tipo de combate e, claro, aparência. Em termos de design de personagem, uma das características mais importantes é a silhueta.
A silhueta é a forma geral do personagem, e quanto mais única for em relação às demais, mais fácil de identificar e se sentir identificado com ela enquanto jogador. Em uma partida típica de Overwatch é necessário saber rapidamente quem é quem durante o quebra-pau para poder tomar decisões e/ou passar ordens. Como as cores dos personagens podem ser alteradas com diferentes skins, boas silhuetas são cruciais para uma boa jogabilidade – e elas mantêm suas características mais importantes mesmo quando detalhes mudam.
Diferentes morfologias (ou seja, formas) de corpos são um dos elementos mais flexíveis para a criação de personagens: um bom design na forma do corpo de um personagem elimina a necessidade de adição de “parafernalhas” para diferenciar sua silhueta de outros (por exemplo: roupas extravagantes, próteses, etc). Em um bom design, todos os elementos conversam entre si para tornar uma figura única, sem a necessidade de adicionar coisas apenas para diferenciar dos demais ou “ficar legal”.
Morfologias de corpos em Overwatch
Primeiro, vamos dar uma olhada nas morfologias de corpos de personagens humanos masculinos em Overwatch, para efeitos de comparação (não serão contados Winston, Bastion, e Hammond, por motivos óbvios). Com a padronização de corpos femininos na mídia, nem sempre notamos que o mesmo ocorre com os masculinos – não é tão perverso, mas não significa que não ocorra. Homens musculosos, altos, com uma pose de “macho”, é o que os jogadores esperam ver em heróis dentro dos videogames.
Seguindo esse padrão em sua maior parte. Há exceções: Roadhog é obeso, Junkrat é esquálido, Lúcio é baixo, Torbjörn é um anão, Genji é esguio, e se pode discutir que Zenyatta possui o corpo magro de um asceta (apesar de que ele não é humano). Todos os demais possuem alguma variação do esquema alto-forte-pose de machão, com mais de um gigante fortalhão e pelo menos três com um corpo consumado de “soldado”. Isso significa que dos 13 personagens masculinos humanos (mais o Zenyatta), seis saem da imagem clássica de um herói de jogos de ação – quase metade, o que é um número impressionante se visto isoladamente, mas pequeno considerando que os 7 restantes diferem muito pouco entre si.
Como já vimos, a padronização de corpos femininos em videogames – em especial os competitivos de ação – é tão comum que muitos gamers se sentem ofendidos quando há uma discussão sobre a variedade dos mesmos. Em Overwatch, há 12 personagens femininos humanos (Orisa não conta); desses, as que não seguem um padrão jovem-magra-com curvas definidas são Zarya (muito musculosa, especialmente na parte superior do corpo), Mei (gordinha), Ana (idosa, e sua silhueta não permite ver curvas do corpo), e Moira (extremamente magra). Também se inclui Pharah, porque nunca vimos seu corpo exceto em detalhes e alguns sprays – então sua silhueta é totalmente definida pela armadura “musculosa”. É discutível se Brigitte entraria no grupo se contarmos seu design sem a armadura, que conhecemos bem através de material adicional: ela é musculosa e com braços fortes, mas não o suficiente para alterar a forma de modo significativo ao possuir também todas as outras características “clássicas” do padrão; para efeitos deste texto, vou considerar ela como um “talvez”. No caso de D.Va, porque o design “humano” dela é parte da jogabilidade (como “baby D.Va”), não será considerada.
Isso nos dá 5 de 12 personagens femininas humanas que com certeza não se encaixam no padrão estabelecido nos videogames, enquanto outras 6 (lembrem que não estou contando Brigitte) sim. Similar ao que ocorre com os personagens masculinos, temos muito pouca variedade quando consideramos que mais da metade do total corresponde a essa visão clássica. Mas com as mulheres, vemos alguns detalhes que são exclusivos.
Por exemplo: todas são convencionalmente lindas.
O que é preferência pessoal não entra em discussão aqui, e os modelos faciais das personagens respeitam suas etnias. Mas os personagens identificados como mulheres em Overwatch sofrem de um caso crônico de “síndrome da mesma cara” (“same face syndrome”) que não ocorre com os demais – e isso passa uma pátina de juventude em todas. Mesmo Moira, Mercy e Ashe, que supostamente estão na meia-idade, não parecem passar dos 30 anos. Todas elas parecem ter a pele lisa, maquiagem, um rosto com traços delicados, e cílios longos e perfeitos – enquanto que os identificados como homens possuem uma variação imensa tanto em estrutura facial como em feições.
As mulheres de Overwatch também tendem a ter roupas reveladoras de forma mais consistente que os homens, também. Existem personagens masculinos com o peito nu (originalmente ou em outras skins) e muitas pessoas já falaram muito sobre o traseiro de Genji, e se pode conceder que isso pode ter sido feito como sexualização, talvez; no entanto, isso não se compara, por exemplo, às fendas do vestido de Symmetra, ou das cintas passando por debaixo das polpas do bumbum da Tracer em uma malha colada, ou da Widowmaker inteira.
Mesmo personagens que não teriam um apelo sexual tão debochado pelo seu próprio conceito terminam ganhando roupas coladas, armaduras com peitos, ou poses de quebrar colunas. Talvez o exemplo mais extremo seja Mercy, uma médica de guerra de quase 40 anos e uma atitude que nos leva a crer em um vício crônico em café, constantemente colocada em skins que lembram fantasias de sex shops. Não que as skins sejam mal-feitas, mas a escolha de concebê-las dessa forma para esse personagem, repetidas vezes, parece deliberada.
Não é a questão aqui levantar essa decisão da equipe de Overwatch até o momento como uma questão mais importante que outras que o jogo possui, mas é preciso problematizar o que essa padronização nos personagens femininos significa. Apesar da maioria dos personagens no jogo serem concebidos como atraentes, por que só as mulheres são consistentemente maquiadas e com a mesma cara? Por que todas elas poderiam ser vistas como convencionalmente atraentes, enquanto que outros personagens podem se dar ao luxo de ser feios, estranhos, ou mesmo esconder suas feições completamente (como Soldado: 76, Reaper, e Roadhog)? Por que apenas elas possuem um amplo leque de roupas reveladoras e sexualizadas/sexualizantes, e por que foi decidido criar essas skins em primeiro lugar?
Essas perguntas não podem ser respondidas sem indagar a equipe diretamente (e provavelmente colocá-los contra a parede se você se fizer ouvir), mas o objetivo delas é menos encontrar respostas e mais gerar uma reflexão entre nós, consumidores de Overwatch. Investigar sobre o que o jogo diz a respeito do ambiente dos MMO de tiro com essas escolhas, a mensagem que passa passa os jogadores, o que a empresa diz dizer, e como poderia ser feito de forma diferente em outro contexto. Dessa forma, podemos criar uma reflexão crítica sobre Overwatch que não se resume a “isso é bom, isso é ruim”, e sim “foi por isso que isso aconteceu”.
E também podemos manifestar nosso desejo de ter personagens como as reimaginações dos personagens em genderbend do @Loudwindow:
Ilustradora, mestra em Poéticas Tecnológicas pela UFMG, game designer, quadrinista, e dona de uma tatuagem da Symmetra como um glaceon que certeza ninguém tem nem terá.
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